novembro 06, 2004

O que faço com a tela do meu quarto? (Parte II)

Aí entendi porque me tinhas feito levar a minha tralha toda connosco! Eu nunca te tinha dito que te queria retratar, mas tu sabias... tu sabias sempre essas coisas...! Certamente, também sabias que eu nunca te teria pedido para o fazer... acho que tinha medo de não transpor para a tela a tua essência, que perdesses esse brilho dos olhos... que me esquecesse de algum pormenor do teu corpo... Isso teria sido imperdoável para ti!

Ainda me vejo, quase inconsciente, pegando na tela, nos pincéis, nas tintas... arrastando tudo para perto de ti, enquanto tu te livravas da roupa que teimava ficar agarrada ao teu corpo, e te deitavas, completamente despida, sobre a areia... Não me deixaste sequer opinar sobre a posição que tomavas... disseste logo "é assim que eu quero ficar!".

Acho que nunca te vi tanto tempo calada, parada, quase estática... nem mesmo quando dormias. Tinhas o estranho hábito de mexer os olhos enquanto dormias...

Demorei algumas horas a pintar, talvez mais do que o normal, não sei se por medo de falhar, se para poder continuar ali a olhar para ti assim, divinal, quase perfeita... fixando-me em cada curva... cada declive... cada sinal... cada cicatriz... em cada ínfimo pormenor do teu corpo.

Ainda te vejo a levantar sem perguntar se já tinha terminado, dizendo que estavas morrendo de calor e entrando assim nua nas águas geladas do rio...

Sim... eu já tinha terminado fazia algum tempo... mas estava paralisado com a tua duplicação!

Ainda te ouço dizer: "amor esta é a melhor pintura que alguma vez farás... a minha alma está dentro desta tela...!

Por vezes, penso que realmente estás dentro da tela, que te roubei a alma e a coloquei lá...

Pouco tempo depois foste embora, dizendo que era melhor para todos! E que me amarias mesmo depois de morta... Mas melhor para mim não foi!! Talvez o fosse para ti... ou para os outros, mas esses a mim nunca me importaram, ao contrário de a ti!

Por vezes, em noites de insónia, acredito que estás mesmo dentro do quadro... ouço-te falar comigo... dizes-me que te procure... que te encontre... Não, eu nunca mais te procurarei!!!

Outras vezes, acordo em manhãs, depois de noites agitadas, com a sensação de que te estás a levantar e a entrar de nova na tinta daquela tela...

Não sei o que fazer com aquela tela! Mas tenho de fazer alguma coisa... ela perturba-me realmente...

Talvez me consigas ouvir, talvez tenhas uma resposta para mim... tu ou qualquer outra pessoa que entenda...