setembro 17, 2004

Fragmentação consciente ou um lado de mim

Cada vez menos aguento a tua ausência… aqui largada entre os montes.
Mas não entendo! Eu sempre me entretive sozinha... Na realidade, desde sempre me habituei ao meu mundo apenas habitado por mim e pela minha estrela… Passei horas e horas sentada agrupando botões, plantando o meu jardim, cozinhando para os meus grilos, lendo, escrevendo, pintando… inventando qualquer coisa.
Sempre que por aqui me encontrava eu era uma parte de mim, bem mais autista, bem mais egocêntrica, muito mais minha.
Agora, não sei se pela obrigatoriedade de aqui estar ou simplesmente pela tua ausência, não consigo fazer nada…
E caio assim nos meus maiores temores: o tédio e a inutilidade!
Mas que fazer aqui erigida sobre a Serra!? A minha parte social limita-se a ir tomar café ao único bar da vila, entre homens e homens bêbedos. E dizer os clássicos “bom dia” e “boa tarde” a todos os que passam. A minha parte artística fica-se pela imaginação, pois tu és o incentivo para colocá-la em prática. A minha parte profissional vou passar à frente, porque limita-se a ajudar à distância e à formulação egocêntrica de teorias para as quais não há recursos monetários para as tentar negar...
Com tudo o que me rodeia de único, a única coisa que vejo é a tua ausência. Sinto-me definhar por dentro, sinto secar a fonte de onde brota a energia que me move… sinto-me recair na infinita imensidão de mim mesma. E temo não querer voltar. Porque o meu próprio mundo foi o melhor que eu encontrei. E nele hoje serei Álvaro feito Trapo.

"Trapo

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, estava bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação? Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego,
Até amaria o lar. Desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afectos? São memórias…
É preciso ser-se criança para os ter…
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer…
Quando foi isso? Não sei…
No azul da manhã…

O dia deu em chuvoso. "



Álvaro de Campos, Poesia.